Vejo imperfeições por todo lado. Acordo de manhã e logo as vejo em mim mesma, no espelho, nos poros e linhas que vão lentamente se acumulando. As vejo na maçaneta do meu quarto que está quebrada, na xícara de café que lascou o cantinho. Nos rostos dos meus pais. Na rua elas estão em tudo: nas calçadas irregulares, no chão que foi varrido apenas ontem e já acumulou sujeira e folhas novamente. No cartaz no muro do vizinho que faz tempo que descascou. As cicatrizes ficam mais evidentes quando estou em São Paulo, a cidade que escancara suas imperfeições, mas aparecem também aqui no interior do Mato Grosso, onde passo essa semana. Elas estão nas árvores que envelhecem e se dobram, nas paredes manchadas de poeira vermelha, nos utensílios agrícolas que enferrujam. Reparo sempre nas mãos de quem trabalha no campo, elas também cheias das mais variadas imperfeições - calos, manchas de sol, cicatrizes antigas.
Isso se repete na gente: não só na nossa cara mas no nosso comportamento, no jeito que a gente fala, se relaciona, toma decisões. Sempre lembro de ter lido em algum lugar que a gente cresce e evolui em formas e velocidades diferentes, em áreas distintas da nossa experiência. Acho essa ideia simples e ótima, porque deixa evidente que somos seres irregulares, contraditórios, melhores ou piores dependendo do ângulo (ou âmbito) através do qual alguém nos encontra. Imagino o indivíduo como uma árvore gigante, que dá mais frutos no lado que pega mais sol e que foi podada desarmoniosamente no canto em que invadia o jardim do vizinho. Uma árvore que fraqueja nos dias de muito frio mas responde tranquilamente à duras rajadas de vento - e que vai crescendo irregular, avançando com suas raízes por onde o piso cede primeiro. Uma criatura que responde ao seu ambiente e vai colecionando suas marcas.
Então é uma pena que a gente demore tanto pra entender que essa é a realidade básica de tudo. Que a perfeição seria absolutamente chata, mas mais do que isso é irrealista. A gente tem cobrado muito a perfeição dos outros e da gente mesmo. Não sei se é só impressão minha mas os últimos anos me parecem assim: cada dia nos tornamos mais críticos e mais exigentes, menos permissivos - mas também menos flexíveis. Pessoalmente considero a flexibilidade uma grande virtude do pensamento, porque sem ela nada seria aprendido, nada se transformaria. “A planta cresce onde ainda não endureceu” (acho que existe um ditado mais ou menos assim).
Noto até na decoração e na arquitetura que vemos por aí: todas essas casas cada dia mais lisas e perfeitas? Embora eu adore uma estética minimalista me incomoda a ideia de entrar em um lugar e nele não parecer existir ninguém. Estamos perdendo a capacidade de lidar com incongruências - nas ideias e nas coisas. Lembro do termo “estética do liso” do Byung-Chul Han, que perpassa as características “bonito, alegre, superficial”. Gosto da breve explicação do termo dada por Izis Tomass e Benito Eduardo Maeso em um estudo da UFPR:
“um processo de perda de profundidade reflexiva de toda atividade do pensamento. Por vivermos em uma conformação social pautada pelos imperativos do imediato e do positivo, a efetividade da comunicação se dá agora por fatores sensíveis e superficiais imediatos. Na Estética do Liso, não há camadas, nem profundidades […] Han a compara a uma estética de superfície das sensações imediatas, muito mais próximas as do tato e do paladar, onde não há nenhum tipo de espaço entre o indivíduo e aquilo que ele experimenta, onde a experiência estética convida ao toque - a exemplo das touchscreens - e ao modo da degustação”
É como se não houvesse tempo de processar o imperfeito, aquilo que precisa ser percorrido com os olhos e com os ouvidos por mais tempo. Essa impaciência com a imperfeição se estende aos nossos gostos e também ao nosso pensamento: promove-se o que é superficialmente belo ou imediatamente interessante. Ter mais pressa é também ter menos vontade de se aprofundar: que alguém que nos diga então o que devemos gostar, o que devemos desejar-ter-ser. Acho que no fim tudo culmina em um padrão generalizado do que devemos consumir - afinal a perfeição também é uma característica do que é novo.
Pode ser um olhar tendencioso, mas é nas artes que encontro alguma diferença, uma tentativa de reaproximação - ou pelo menos de acordo - com as nossas cicatrizes. Desde sempre nós escrevemos e cantamos sobre elas. Os poetas particularmente as adoram. Na pintura também me vejo rodeada de imperfeições (com as quais criei uma certa afeição). Se estou pintando e me dou conta de um traço que ficou mal colocado, uma figura que não sei como resolver, tenho achado mais interessante… é com menos frequência que tento concertá-los. Às vezes a imperfeição é a graça de uma tela inteira. Decido que a imperfeição é a alma daquele trabalho, portanto não deve ser corrigida. É deixada ali como um registro de algo que a tinta fez sozinha ou de alguma escolha sortuda, um gesto incorreto, sim, mas inesperadamente gracioso.
Podemos nos ver assim - e aos outros. Exige uma dose de doçura. Sabe aquela beleza agridoce e melancólica que surge em algumas canções? De algo que é lindo mas ao mesmo tempo dá vontade de chorar? Essa emoção é um resquício de algo imperfeito. Acho que o mundo todo, todas as coisas e quase todas as pessoas (pelo menos as adultas) são mais ou menos assim. Inevitavelmente um pouco gastas e trincadas, com resquícios de uma beleza emocionante que é ao mesmo tempo engrandecida e frustrada pelo tempo e pelas circunstâncias. Beleza não no sentido estético apenas, mas também de pensamento, temperamento, trejeitos, de história. A única beleza que nos pertence de verdade: aquela fatalmente e irremediavelmente imperfeita.
P.S: Um trechinho da entrevista de Toni Morrison que me fez pensar bastante sobre o que é essa beleza imperfeita - aqui. Esse assunto tem me interessado muito então espero que também faça um pouquinho de sentido pra vocês e não seja exageradamente sentimental <3 um beijo.
**Imagens: frames de The Virgin Spring (1960) e Love at Sea (1965) pelo instagram @slavicarts.
// Encontro Rodada de Ideias, 24 de Agosto
Vou aproveitar o espaço do compartilhados do mês pra avisar, quem estiver em POA, que organizamos mais um encontro presencial, pra se olhar olho no olho, dividir os nossos desafios e compartilhar ideias que possam ajudar umas as outras. Bem simples, dá pra ler mais a respeito e se inscrever aqui! Usamos a metodologia de encontros criada no Sozinha Não, chamada Rodada de Ideias, que vai ser mediada pela Gabi Teló. Dá pra participar de várias formas, mas eu sugiro se inscrever, ir lá pessoalmente e conhecer o grupo, é um espaço de muita troca - de conhecimento e de afeto. Esperamos vocês.
// Compartilhados do mês
Texto publicado na UFPR, referência sobre arte x estética do liso que comentei brevemente acima, aqui. Para quem quiser ler mais sobre, o livro do Byung-Chul Han, Salvação do Belo.
Ouvindo Walkin’ My Cat Named Dog de Norma Tanega em determinados momentos; Muse de Jimin em outros; e (pra somar à essa miscelânea de referências que não fazem sentido juntas) lendo “Uma vaga de sonhos” de Louis Aragon, um texto super poético e bonito, do início do surrealismo, e “O fim do mundo e o impiedoso país das maravilhas” de Haruki Murakami, um dos meus escritores favoritos, que escreve ficção maravilhosamente bem e esse não é exceção. Assistindo: a terceira temporada de “The bear”, na Disney Plus, sigo absolutamente adorando, uma das minhas partes favoritas é quando os episódios desviam do roteiro principal pra aprofundar na realidade de um personagem específico, tem algo muito bonito ali; e uma série aleatória mas fofa, pra quem tem curiosidade pelo BTS chamada “Are you Sure?” gravada com dois dos queridos antes de entrarem no serviço militar, também da Disney Plus.
É isso, sem filmes esse mês - inclusive, se assistirem algum maravilhoso, aceito indicações respondendo esse email. Se cuidem, não pirem demais nas incongruências, celebrem as imperfeições … e nos falamos de novo em outubro!
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Mulher! Que texto incrível. Essa reflexão ressoou na minha alma. Estamos viciados em nos livrarmos do que nos torna humanos. Obrigada por compartilhar.