Enquanto isso em Porto Alegre
parte I - os primeiros dias no maior desastre climático da história do RS.
Maio foi o mês da pior enchente da história do Rio Grande do Sul. Eu e a Gabi estávamos em duas cidades afetadas pelo desastre climático: Porto Alegre e Caxias do Sul. Uma mais atingida pela água, outra pela terra.
Buscando elaborar um pouco do que vivemos e compartilhar diferentes perspectivas dos eventos, reunimos como foi para cada uma passar pelos primeiros dias da tragédia. Dividimos os relatos em duas partes: hoje, comigo de Porto Alegre, e na quinta com a Gabi, direto de Caxias.
Em Porto Alegre
Lembrar como tudo começou exige esforço. A sensação é de que muitos dias se passavam em cada hora que vivíamos. As atualizações vieram de diferentes canais, especialmente pelo Instagram, o que no começo fez tudo parecer uma versão atualizada da pandemia de covid.
A diferença é que dessa vez o nosso “inimigo” não era invisível. O mais seguro não era ficar em casa isolado e sim em contato, tanto online quanto presencial, na medida do possível.
Dia 03.05 - sexta: desde o final de abril se ouvia nas notícias sobre as fortes chuvas no estado, mas foi nesse dia que elas começaram a extravasar no rio Guaíba. Na quinta-feira, o Matinal informou que a velocidade da água era de 7 cm por hora, o que fez com que às 20 horas se ultrapassasse o marco da enchente de 1941, que foi de 4,75 metros.
Hoje, esses números dos limites para alagar a cidade estão gravados na minha cabeça. A cota de inundação é de 3 metros e o Guaíba chegou a 5,33 metros. Rapidamente o centro histórico da cidade e as regiões mais próximas do rio Jacuí, como o 4º distrito, foram se enchendo de água.
Em um grupo que tenho com mais 3 amigas, uma delas já estava saindo de casa pelo risco de alagar sua casa no 4º distrito. Entendendo já que seria fundamental termos um carro para nos deslocarmos na cidade para compreender onde poderíamos ajudar, combinei com minha amiga Laura de no sábado acordar cedo e irmos para alguns dos abrigos que estavam se formando.
Dia 04.05 - sábado: rapidamente abrigos foram se abrindo e no decorrer do dia, de hora em hora, ficávamos sabendo de novos espaços. Um excel aberto com os lugares, endereços e necessidades foi formado pelas pessoas e, assim, tínhamos alguma informação sobre onde poderíamos ir.
Começamos o dia assim: passamos em uma farmácia para comprar alguns artigos de higiene pessoal e fomos para a zona norte, em uma escola onde uma amiga da Laura compartilhou no insta que precisava desses ítens.
Fomos prontas para sermos voluntárias, mas o espaço já estava organizado e bem atendido. Abrimos a planilha e fomos para o segundo endereço mais próximo: o SESC. Chegando lá, havia uma fila de carros e alguns jovens descendo de Uber - imagino eu, por terem visto, como a gente, que o lugar precisava de voluntários. Todos foram dispensados, pois lá também já estavam organizados os trabalhos.
Passamos em um terceiro endereço e o cenário ficou evidente: não havia tempo nem pessoas suficientes disponíveis para atualizar as informações das prioridades. A gente precisava de um plano para conseguir contribuir da melhor forma que poderíamos, com a nossa experiência em gestão de projetos e as redes de conexões que temos.
Dia 05.05 - domingo: criamos nosso grupo no whatsapp com amigas e parceiras próximas de trabalho. Algumas de Porto Alegre, outras gaúchas espalhadas pelo mundo querendo muito ajudar.
Começamos a nos organizar e entendemos que o nosso objetivo era descentralizar as doações, levar elas até abrigos e espaços de acolhimento que estavam recebendo menos visibilidade e apoio. Nos dividimos organicamente em: pesquisa e contato com os espaços - especialmente aqueles localizados na zona norte, área mais afastada e que dificultava o deslocamento saindo do centro + logística de compras e entregas para os lugares a partir das demandas que identificamos em cada um + prestação de contas, comunicação e contato com fornecedores para compra de materiais específicos.
Criamos nossa planilha de prestação de contas e começamos a compartilhar com os amigos o pix que disponibilizamos.
Aos poucos fomos nos dando conta que algumas pessoas tinham receio de doar para o pix que o governo do estado criou e que muitas preferiam apoiar diretamente quem estava à frente das ações ou ainda as instituições que abrigavam pessoas.
Eu entendo perfeitamente essa insegurança. Nos lugares em que fui, os maiores responsáveis pelos abrigos e espaços de acolhimento eram pessoas, pequenas instituições, escolas, universidades, igrejas.
A prefeitura de Porto Alegre não conseguiu ter a agilidade que a situação exigia nos primeiros dias de desastre. Ninguém recebeu indicações do que fazer, por onde começar, pra onde ir, com quem falar. As pessoas se auto-organizaram e agiram da melhor maneira que podiam, priorizando os resgates e necessidades iniciais de saúde, alimentação e higiene.
Em todos os espaços que visitei, quem estava à frente dos trabalhos eram mulheres. Logo percebemos que o bairro Sarandi, o mais afetado pela enchente, não receberia tanta atenção por sua localização mais afastada e por algumas pessoas não conhecerem a região.
A Laura, minha amiga que esteve comigo em campo desde o dia 1, tinha o contato de uma cooperativa de mulheres costureiras na região e foi lá que centralizamos as doações para o bairro. A partir do dia 08.05, com o contato da minha amiga Ju de quem estava preparando marmitas, organizei a entrega diária de comida para a cooperativa. A primeira vez que chegou apoio municipal foi só no dia 10.05, em um caminhão do exército com homens fardados e armados carregando garrafas d’água.
Enquanto tudo isso acontecia fora de casa, no dia 08.05 - quarta -, acabou a água que tínhamos na caixa d’água do prédio. Os banhos começaram a ser com lenços umedecidos ou a cada 3, 4 dias em chuveiros de amigas que ainda tinham água. As descargas foram suspensas e substituídas por desinfetante, a alimentação começou a ser mais industrializada, com poucos legumes e quase nenhuma verdura, pois as comidas vivas logo acabaram.
Não saberia descrever todas as emoções envolvidas. Percebo que enquanto relembro, só acesso ansiedade, angústia, tristeza, impotência. Ao mesmo tempo, passar por esse momento com amigas, conhecer novas pessoas que nos apoiaram e receber mensagens de quem estava longe perguntando como eu estava, fora todos os abraços que recebi de desconhecidos, me alegram e emocionam.
Eu gostaria que a gente não tivesse vivido tudo isso, mas fico orgulhosa do que movemos nos últimos dias. É difícil explicar, mas eu não lembro de ter sentido antes um apoio tão verdadeiro vindo de tantas pessoas conhecidas e desconhecidas.
Tem como as coisas voltarem ao normal depois de tantas vidas interrompidas, casas perdidas, histórias e conquistas engolidas por um desastre anunciado?
Eu adoraria que sim, que fosse possível só se alienar e voltar à “vida normal”. Mas espero que não, que a gente não permita que tudo isso se repita.
Convite para a Rodada de Ideias Aberta
Como a vida continua depois de uma catástrofe climática? Como pensar no futuro quando o agora ainda precisa da nossa dedicação? E para quem é autônoma ou empreendedora, como voltamos para os nossos negócios?
Queremos te convidar para conversar sobre essas perguntas em uma Rodada de Ideias Aberta. Se você for de Porto Alegre e região metropolitana, e quiser conversar sobre as dúvidas relacionadas aos negócios após a enchente, vamos nos encontrar no primeiro final de semana de junho para essa troca.
Para entender qual data e horário funcionam melhor, criamos um pequeno formulário que você encontra aqui embaixo. Depois de ler as respostas, vamos compartilhar com todas as informações para o encontro.