Como vocês sabem, maio foi o mês da pior enchente da história do Rio Grande do Sul. A Gabi Teló mandou pra vocês uma newsletter na terça feira (parte I) contando a experiência dela durante esse período e eu escrevo aqui de Galópolis, o bairro de Caxias do Sul onde eu nasci e onde minha família mora, que faz parte de uma zona mais rural da cidade.
Como esse assunto segue muito vivo à nossa volta e dentro da gente, o Enquanto Isso desse mês não tem como ser sobre outras coisas. Hoje eu conto o meu relato, pensando que ele pode ressoar com a experiência de outras de vocês, que também estão vivendo aqui no Estado. E para aquelas que nos leem de outras regiões do Brasil, talvez esse texto traga mais uma perspectiva do que foi essa crise climática, como a atravessamos e quanto cada pequena ajuda é necessária e bem vinda. Se esse assunto ainda estiver tocando um lugar muito delicado pra você, fica à vontade pra pular essa newsletter ou deixar pra ler ela em outro momento ♡.
Eu comia asinhas de frango no sofá, enquanto assistia um jogo da NBA na tv. Minha mãe também tinha aberto uma garrafa de vinho, aproveitando que ficaríamos uma semana sozinhas em casa, só ela e eu. Já vinha chovendo há alguns dias aqui na serra gaúcha, uma chuva persistente, que em nada nos preparava para tempestade que chegaria a seguir. Acho que era o primeiro dia de maio, mas agora não tenho tanta certeza. Fazia mais ou menos um mês que eu tinha saído do meu apartamento em São Paulo e voltado pra casa dos meus pais, em Galópolis, pra passar um período aqui no Sul. Naquela noite, a visão do outro lado da janela me distraía do jogo e minha mãe parecia mais tensa a cada minuto. Ela nunca gostou de dias de chuva, diferente de mim. Ainda na infância eu costumava correr para a janela antes de um temporal, quando só se veem os raios no céu, e ficava olhando, esperando até que a água começasse a cair, como se aguardasse o início de um espetáculo.
A diferença é que dessa vez eu também estava apreensiva. O espetáculo em questão era muito assustador. Lembro de ter mandado um vídeo pro meu pai ou meu irmão, perguntando se eles achavam que a casa era segura o suficiente. Os meteorologistas estavam prevendo que choveria em dois dias a chuva de um mês inteiro; o Véu de Noiva, uma cachoeira na saída do nosso bairro, parecia ter dez vezes o seu volume normal e a chuva já descia fazendo estrago nas cidades da volta e nas estradas da região.
Meu bairro faz parte de uma área rural e tem uma topografia bem específica: um vale profundo cortado por um rio - que de tempos em tempos transborda porque boa parte da agua da cidade escoa através dele. Nada é plano aqui, só encostas e mais encostas… e casas subindo pelos morros em todas as direções.
Tínhamos nos preparado, carregado as lanternas e baterias extras do celular, imaginando que faltaria luz. Tínhamos comprado um pouco de comida pro final de semana, porque algumas arvores já haviam caído no trecho da BR116, a principal rua que liga nosso bairro à Caxias do Sul. Nos preparamos como sabíamos, com a experiência que tínhamos com as chuvas do Sul até aquele momento.
Quando o jogo terminou, a água sacudia as janelas e minha mãe sugeriu que fossemos dormir porque a cena na sala era muito apavorante. Levamos cada uma sua lanterna e deitamos ambas torcendo, minha mãe provavelmente rezando, pra que a chuva diminuísse.
Duas horas depois eu acordo com várias mensagens num grupo do WhatsApp. A água estava entrando no primeiro andar do nosso vizinho e a terra avançava sobre as casas do outro lado da rua. Minha mãe entrou no meu quarto, apavorada. A vizinha da frente tinha ligado dizendo que o morro inteiro estava descendo. Nunca vi minha mãe tão sem ação: ela sentou na minha cama, ainda meio perdida entre o sono e o medo, e só me perguntou - Gabi o que a gente vai fazer? Lembro do momento como se fosse agora.
Não tínhamos mais luz então sair de carro com urgência não parecia uma opção. Pedi que ela arrumasse uma mochila pequena, “o que tu precisa levar se a gente tiver que sair correndo?”. Eu tentei manter um mínimo de calma, mas na verdade também estava agindo por puro instinto. Nunca tinha pensado sobre isso, nunca vivi algo assim: o que a gente carrega junto nessas horas? Eu lembro que eu só pensava, “se acontecer, dá mesmo tempo de sair correndo?” Ouvi esse mesmo pensamento da boca de inúmeras pessoas nos últimos dias - um mesmo medo compartilhado.
Enchemos as mochilas no piloto automático (minha mãe notou no dia seguinte que só tinha pego calcinhas e remédios, nenhuma roupa quente e nenhum dos documentos importantes, só um número excessivo de calcinhas). Minutos depois ouvimos o muro do vizinho estourar. Haviam saído na corrida, com a nenê, buscando um lugar mais seguro. Mais alguns minutos e vimos pela janela outras duas famílias deixarem suas casas, que começavam a ser invadidas pela agua e pelo barro que descia da encosta.
Chovia como nunca. Sair de casa parecia extremamente perigoso. Ficar também. Acabamos passando a noite inteira no sofá, vestidas e com os tênis colocados, duas mochilas no canto da sala nos fazendo companhia. A noite toda a chuva não parou, nem por um minuto.
Na manhã seguinte, a rua estava tomada por terra e pedra. Nossa casa estava intacta, mas a de um vizinho tinha rotado completamente, outra estava cheia com o barro do deslizamento, outras três tinham ficado alagadas. O bairro estava sem luz e sem acesso rodoviário. A BR tinha cedido entre Galópolis e Vila Cristina e barreiras de terra tinham invadido a pista na direção de Caxias e nas vias rurais. Saímos na calçada para tentar encontrar com os vizinhos, os que ainda estavam ali, em busca de contato e notícias.
No nosso pequeno vale com seis mil habitantes, 4 casas estavam soterradas, 7 pessoas estavam desaparecidas debaixo dos deslizamentos, e uma senhora tinha sido levada pelo rio. Não têm como amenizar a tristeza dessas histórias. Não existem palavras melhores. Eu acho que ainda eram apenas vinte desaparecidos registrados no estado e oito deles estavam ali, no nosso minúsculo bairro escondido, que nunca aparece nos noticiários e nos jornais. Somávamos aos primeiros números do que viria a ser essa grande tragédia da enchente no RS.
E, de novo, a chuva não parou. No dia seguinte evacuaram toda a extensão da encosta onde fica minha casa. Encontraram uma fissura na rua, no trajeto que eu fazia todos os dias de casa até o atelier. A estrada estava abrindo e ameaçando cair sobre o bairro - era o que corria pelos grupos de whatsapp. As pessoas se desesperam nessas horas (compreensível né?) mas nada é mais apavorante que ficar ouvindo alguém dizer que o bairro está perdido e que a montanha vai cair sobre as nossas cabeças. No outro dia mais pessoas foram retiradas de casa, quase 50% do bairro. Policiais e bombeiros chegaram de madrugada, com sirenes e ordens de evacuação à força, caso alguém se recusasse a sair.
Vimos tudo isso da outra encosta, já seguras na casa da minha tia. Nesse dia eu chorei por apenas 30 segundos. Foi diferente de um choro por tristeza - chorei porque precisava pensar e não conseguia. Chorei porque estava tensa e com medo. Na pressão de decidir sair de casa, não conseguia escolher o que era melhor: dirigir pela rua que estava cedendo ou ficar debaixo da encosta que ameaçava cair? Parece uma loucura escrever isso agora, mas essas aparentavam ser nossas únicas opções. Foram as lágrimas mais rápidas e úteis que chorei até hoje, porque me deram um pouco de clareza: saímos, antes mesmo da evacuação, e chegamos bem do outro lado. E então nós estávamos seguras.
No mesmo dia eu respondi um número enorme de mensagens de amigos e familiares, dizendo “estamos bem, estamos num lugar seguro” enquanto assistia as notícias de um Estado que até agora parece tudo, menos seguro.
Ainda não podemos voltar pra casa, mas nossa casa não caiu, o morro não caiu e nosso querido bairro segue existindo. Graças aos esforços da evacuação, ninguém mais se machucou. A situação melhorou por aqui, enquanto piorava em outras partes.
Os dias seguintes passaram como um borrão. Acompanhei as notícias como pude mas não sei mais a ordem de como tudo aconteceu. Não sei mais dizer ao certo quais cidades alagaram e quais tiveram deslizamentos. Não sei exatamente em quantos dias toda essa água chegou em Canoas e Porto Alegre, devastando tudo pelo caminho, e então seguindo até Pelotas. Tudo parecia terrível, para todos os lados. Um estado inteiro em choque, tentando se salvar e socorrer aos outros, autoridades totalmente despreparadas, números cada dia mais assustadores e um evento climático incompreensível.
Acho que essa é a sensação mais forte: a de vivenciar algo inacreditável.
A gente sabia que seria sério, que haveriam danos. Mas isso aqui, isso aqui não parece real.
Eu gostaria de escrever sobre os dias que se seguiram, que passei voluntariando na triagem de roupas que atendia Galópolis e outras cidades da região. Gostaria de falar sobre as pessoas que conheci, sua entrega total ao resgate e acolhimento dos que foram mais atingidos.
Gostaria muito de falar da coragem que presenciei, do nosso povo heróico.
Mas ainda não consigo encontrar as palavras certas.
Gostaria de contar da equipe de bombeiros, obstinados e valentes, que vieram de Roraima, do extremo norte do Brasil, procurar os desaparecidos aqui no meu bairro, no extremo sul. Queria falar dos geólogos do Rio de Janeiro, que ainda vasculham as encostas da minha rua, achando alternativas pra que a gente possa voltar a viver ali, sem medo.
Queria falar de toda essa gente que perdeu suas coisas, que vai precisar reconstruir sua casa. Queria falar de quem se separou da família ou perdeu um familiar na enchente. Queria falar de todas essas pessoas que arriscaram a própria vida para salvar desconhecidos.
Gostaria muito que esse texto fosse menos trágico.
Mas ainda não consigo encontrar as palavras certas.
Eu sei que a gente está passando agora para a fase de limpeza e reconstrução e preciso encontrar frases mais encorajadoras, porque não podemos perder a determinação. Uma pessoa a mais, uma casa a mais, um cachorrinho a mais, uma marmita a mais, cada uma dessas coisas é uma missão gigante. Um cobertor, uma escova de dente, uma faxina, tudo isso faz uma diferença imensa agora. Essas são as palavras importantes, mesmo que não sejam as melhores.
Então escrevi esse texto contando o que vivenciei aqui - porque sei que a história ressoa com a experiência de um estado inteiro. Também entendo que a situação do Rio Grande do Sul precisa ser contada e recontada por diversos ângulos, quantas vezes for necessário, pra que todo mundo entenda a gravidade do que nos aconteceu.
Precisamos fazer emendas num território que foi rasgado pela água. E como não tenho as palavras certas, escrevo pra vocês buscando por opiniões e ideias… Como evitar que isso aconteça novamente? Temos um plano?
No fim se resume a isso. Desculpem se esse relato foi mais longo que o necessário, às vezes as histórias tem vida própria. Desejo o melhor pra todas/todos vocês. Se estão no RS ou não, mas puderem contribuir, temos muito trabalho pela frente. Encontrem uma iniciativa de confiança e não percam a força de vontade.
Se cuidem ♡
*** as imagens dessa newsletter, em ordem: pintura de @richardwhadcock; quotes de @filoeliteratu e @wordsarevibrations.
Como a vida continua depois de uma catástrofe climática?
// Convite para uma Rodada de Ideias, presencial, em Porto Alegre.
Como pensar no futuro quando o agora ainda nos exige tanto? E para quem é autônoma ou empreendedora, como voltamos para os nossos negócios?
Queremos te convidar para conversar sobre essas perguntas em uma Rodada de Ideias Aberta. Resolvemos propor esse encontro porque acreditamos que podemos ajudar umas às outras, se pensarmos juntas. Se você for de Porto Alegre e região metropolitana, e quiser conversar sobre as dúvidas relacionadas ao trabalho após a enchente, vamos nos encontrar no primeiro final de semana de junho para essa troca.
Para descobrir a melhor data e horário, criamos um pequeno formulário que você encontra aqui embaixo. Depois de ler as respostas, vamos compartilhar com todas as informações para o encontro.
Que relato impressionante. Torço pra tudo ficar bem